Junho de 2013: E não eram mesmo só R$ 0,20!

E dando continuidade a nossas postagens sobre as jornadas de junho de 2013 e seus reflexos na política brasileira, convidamos mestre em Ciência Política e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, Mauro Petersen Domingues. 

Não é pelos R$0,20. É pelo meu direito de ser feliz[1]

Mônica Raoulf El Bayeh

As pessoas foram às ruas revoltadas com o aumento das passagens. Por R$ 0,20? Vale isso? Ir às ruas por tão pouco?

R$0,20 é mesmo muito pouco. Mas se é meu, compro uma bala e adoço a vida. Se me adoça a vida, mesmo que provisoriamente, valeu muito.

Não é por R$0,20. Nunca é. R$0,20 é a gota d’água que faz o copo vazar. E assim se desmancham amizades, namoros, noivados, casamentos, parcerias.

Duas crianças pequenas conversavam:

- Seus pais separaram por quê?

- Por causa de batata frita. E os seus?

- Minha mãe esqueceu de comprar café.

Esses foram os R$0,20 desses casamentos desfeitos. Alguém, além dessas crianças, acredita que o motivo foi batata frita e café? A gota d’água leva a fama. Mas, de verdade, ela é inocente.

Engolimos sentimentos de todo tipo. Por vergonha, não contamos do nosso amor. Por pudor, não falamos dos nossos desejos pouco atendidos. Disfarçamos a raiva para evitar brigas.

Engolimos as emoções e vamos enchendo nosso balão. Achamos que vamos tê-lo, para sempre, lindo e resistente. E continuamos enchendo com coisas não ditas.

Até que um dia, uma batata frita qualquer faz o balão explodir. Aquele era o limite. Cada pedaço vai para um lado. O que era enfeite de festa vira trapo triste.

De R$0,20 em R$0,20 construo minha tristeza ou minha felicidade. Esse cofre sou só eu que encho ou esvazio. Minha escolha de vida, minha opção de ser feliz é construída de grão em grão. Por isso nada nunca é pouco.

Esse dedo de prosa de hoje, não é por R$ 0,20. É pelo direito de ser feliz.

 

 

Apresentação

A crônica da psicóloga e escritora Mônica Raoulf El Bayeh me serve de pretexto para repetir algumas das ideias que defendi numa mesa redonda promovida pelo Departamento de Ciências Sociais no final de junho de 2013 chamada a discutir justamente as chamadas “jornadas de junho”. Na ocasião os colegas que comigo dividiram a mesa apontavam em suas falas a legitimidade das manifestações que, segundo eles, expressavam a indignação da população com a baixa qualidade dos serviços públicos fornecidos pelo Estado brasileiro diante de um contexto de truculência das autoridades, gastos, também públicos, enormes e muitas vezes suspeitos a pretexto de preparar o país para os megaeventos da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016).

Contexto

Em junho de 2013 ocorreu no Brasil a Copa das Confederações da FIFA (de 15 a 30 de junho de 2103), evento-teste para a Copa do Mundo programada para ocorrer no ano seguinte. Além dos transtornos causados pelas intervenções urbanas e dos gastos com os preparativos para aqueles eventos, as exigências da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional quanto à qualidade dos serviços e às medidas de segurança que deveriam ser oferecidas pelo Estado brasileiro aos participantes e aos turistas estrangeiros que viriam ao país em função desses megaeventos acirraram a contestação por parte de diversos setores sociais sobre a diferença entre esse tratamento oferecido aos estrangeiros e aquele usualmente dado aos cidadãos brasileiros. A cobertura midiática da Copa das Confederações acabou por conferir visibilidade mundial e por estimular a realização de protestos, que cresceram ao ponto de atrair verdadeiras multidões para as ruas, provocando enorme desgaste da imagem pública do governo federal e da Presidente da República, Dilma Roussef.

Para se ter uma ideia do tamanho do desgaste sofrido pela Presidente e seu governo basta olhar para os números registrados nas pesquisas de opinião pública do IBOPE feitas para a Confederação Nacional da Indústria durante o ano de 2013[2]. Em 1º de março de 2013 o IBOPE registrava 63% de aprovação (bom e ótimo) para a administração da Presidente, com 29% de regular e apenas 7% de reprovação (ruim ou péssimo). Em 1º de junho a popularidade da Presidente começou a sofrer um abalo, com os números passando a serem de 55%, 32% e 13% respectivamente. Ao final das chamadas “jornadas de junho”, ou seja, em 1º de julho de 2013, o IBOPE registrava uma aprovação de 31%, igualando a rejeição nos mesmos 31% e com as avaliações de “regular” passando a predominar, em 37%. De março a julho de 2013, a Presidente teve queda de aprovação de 63% para 31% e a reprovação passou de 7% para 31%.

Embora tenham ocorrido manifestações em todo o país e ao longo de meses naquele ano de 2013, o epicentro das foi mesmo a cidade de São Paulo durante o mês de junho. O motivo formal das primeiras manifestações de junho em São Paulo foi o aumento das passagens dos ônibus municipais e do metrô de R$ 3,00 para R$ 3,20, os tais 20 centavos. Tal aumento, fortemente contestado por movimentos sociais da cidade, foi mal recebido principalmente pelos estudantes que resolveram puxar uma primeira manifestação no dia 06 de junho, e que se repetiu no dia seguinte, sofrendo, em ambas as ocasiões, forte repressão por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo. A repressão policial recebeu apoio inicial da grande mídia, que acusava os manifestantes de vandalismo. No entanto, aos olhos da população as manifestações começaram a atrair apoio e, especialmente, a repressão policial causou indignação. Uma nova manifestação, já no dia 11 de junho atraiu grande número de participantes, muito além dos estudantes, começando a ganhar ares de movimento de massa e ampliando sua motivação, que deixava de ser “apenas” contra o aumento da passagem e se voltava para a afirmação do direito à manifestação, contra o autoritarismo e a repressão policial.

Nova repressão policial e novo apoio da mídia à repressão deram ao movimento das ruas sua passagem definitiva para a contestação mais ampla. A capa do jornal O Globo de 12 de junho de 2013 é emblemática! Em matéria no centro da capa, o jornal estampa o título “Rebeldia e Vandalismo”[3] comparando o que considerava como legítimas manifestações da juventude turca contra o regime do país ao vandalismo dos estudantes cariocas e paulistas. Em sua participação durante a edição do Jornal Nacional da rede Globo de televisão na noite do mesmo 12 de junho, o cineasta Arnaldo Jabor classificou os protestos ocorridos em São Paulo e no Rio como “ignorância política”, taxando os manifestantes de “arruaceiros”, de rebeldes sem causa, e tornando a fazer a comparação com as revoltas na Turquia[4].

O dia 17 de junho marca a transformação das manifestações em movimento de massa e, também, a mudança de tom da cobertura midiática, que passa a reconhecer sua legitimidade e passa a buscar direcioná-la contra as administrações petistas de Dilma Roussef, no governo federal, e de Fernando Haddad, na Prefeitura de São Paulo. Novamente, coube a Arnaldo Jabor verbalizar esse reposicionamento da mídia e apontar os novos alvos contra quem tanto os movimentos de rua, agora tidos como legítimos, quanto a grande mídia deveriam canalizar suas críticas. Os rebeldes sem causa viraram “o povo”, a “juventude”, defensora da república contra a corrupção e o conluio dos poderes, e a essa “juventude” Jabor atribui o papel de construtora de um “momento histórico lindo e novo”[5]. Do apoio à repressão contra os “arruaceiros”, a cobertura midiática passa a defender que a polícia respeite o direito de manifestação da população, sinalizando claramente que, a partir daí uma nova aliança se estabeleceu entre um conjunto de interesses por ela representados e as manifestações de rua.[6]

Razão e sensibilidade

O que esse pequeno histórico visa destacar é que as chamadas jornadas de junho, que começaram como uma luta de estudantes pelo “passe livre” em algumas cidades brasileiras, em especial a cidade de São Paulo, enquanto teve esse caráter de luta por direitos sociais foi tratada com hostilidade por autoridades, forças de segurança pública e pela grande mídia. No entanto, a partir de determinado ponto, o movimento ganhou uma adesão mais ampla, canalizando uma insatisfação difusa quanto à qualidade dos serviços públicos, à lisura dos gastos públicos e da própria democracia no país. Essa agenda passou a abrigar setores diferenciados que iam desde aqueles que pretendiam ampliar e democratizar os direitos sociais e políticos àqueles que defendiam uma menor intervenção do Estado na vida econômica e social e formas autoritárias de gestão dos conflitos sociais e econômicos.

A dinâmica das chamadas “jornadas de junho” levou a que, pela primeira vez em décadas, uma parcela conservadora e mesmo reacionária da sociedade brasileira viesse às ruas mostrar seu descontentamento com os governos de centro-esquerda que vinham se sucedendo no comando do executivo federal desde 2003. As ruas passaram a estar em disputa e, muito em função do amplo apoio empresarial e midiático à sua pauta, os grupos favoráveis a uma agenda identificada com a Nova Direita passaram a dar o tom das manifestações. A estratégia neoudenista do “mar de lama”, que vinha sendo acionada contra o Partido dos Trabalhadores desde, pelo menos, a crise do mensalão em 2005, passou a dominar a agenda, com o Partido dos Trabalhadores, e o Estado em geral, sendo identificados como o mal a ser combatido.
O que me interessa destacar aqui é que se houve uma boa dose de emoção, de indignação, na origem dos protestos de junho de 2013, com o humor da população servindo como base para dispor as pessoas ao protesto, houve também uma grande dose de cálculo racional da parte de atores políticos e empresariais para canalizar essa insatisfação, essa indignação, de modo a desgastar seus adversários e a promover sua própria agenda para a sociedade brasileira. Para isso, esses setores mobilizaram recursos econômicos, simbólicos e organizacionais.[7] A agenda antiaborto por parte de lideranças religiosas, por exemplo, foi fortemente mobilizada no início do mês de junho de 2013, com a “Marcha Nacional pela Vida” em Brasília[8] (04/06/2013) e na manifestação convocada pelo pastor Silas Malafaia em defesa da família tradicional, contra o aborto e o “casamento gay” no dia seguinte, também em Brasília[9]. No final do mês de junho de 2013, a 21ª edição da “Marcha para Jesus” atraiu uma multidão na cidade de São Paulo[10].É interessante observar alguns dos nomes das lideranças religiosas neopentecostais envolvidas na convocação dessas manifestações: Damaris Alves (Igreja do Evangelho Quadrangular), Silas Malafaia (Assembleia de Deus) e Marcus Feliciano (Assembleia de Deus).

Eleições de 2014

Apesar do desgaste sofrido com as jornadas de junho, a Presidente Dilma conseguiu recuperar parte do prestígio junto à opinião pública, como mostram as pesquisas já citadas feitas pelo IBOPE no ano de 2013 e 2014[11], mantendo sua condição de disputar a reeleição ao cargo. A apertada vitória no segundo turno (diferença de cerca de 3,2% dos votos), no entanto, e o baixo desempenho das forças de sustentação de seu futuro governo nas eleições para o Congresso e nos executivos e legislativos estaduais mostraram que o segundo mandato sofreria muito mais contestação tanto no plano da sociedade quanto das instâncias representativas. De fato, já na campanha eleitoral muitas forças que antes compuseram alianças com as candidaturas vitoriosas de Lula (2002 e 2006) e Dilma (2010) se afastaram, apoiando principalmente Marina Silva no primeiro turno e Aécio Neves no segundo[12]. Particularmente significativo foi o sucesso da candidatura oposicionista de Aécio Neves no estado de São Paulo[13], principal base do Partido dos Trabalhadores desde sua origem.

Paralelamente aos arranjos pré-eleitorais e à disputa eleitoral de 2014 desenrolou-se no país outro processo de grande importância: a chamada “Operação Lava-Jato”. Tendo como alvo suspeitas de corrupção na Petrobras, a investigação da Polícia Federal teve início em 17 de março de 2014 levando à criação quase imediata de uma força tarefa do Ministério Público Federal na cidade de Curitiba. Dentre diversas acusações de corrupção, uma particularmente afetava a credibilidade do governo de Dilma e da aliança que lhe dava sustentação: recursos advindos das empreiteiras envolvidas com a Petrobras estariam sendo usados para comprar o apoio de parlamentares e partidos ao governo, alimentando também as alianças e candidaturas às eleições de 2014.

A Lava-Jato e sua abundante cobertura midiática serviram de palanque para uma campanha de desgaste do governo de Dilma em pleno ano eleitoral. Apesar disso, e de forma até surpreendente, a Presidente conseguiu a reeleição. No entanto, tanto a nova composição da classe política brasileira saída das urnas em 2014 quanto o cenário de forte desgaste político da Presidente e de suas principais forças de sustentação, em especial o Partido dos Trabalhadores, propiciariam o ambiente propício para a formação de uma maioria contrária à continuidade do segundo mandato de Dilma, tanto nas ruas como no Congresso.

Diversos personagens das jornadas de junho de 2013 ressurgiriam agora fora de sua roupagem de participação espontânea e emocional, demonstrando ampla organização política, participando ativamente na campanha pelo impeachment da Presidente e, especialmente, na montagem do novo governo de Michel Temer e sua agenda de reformas neoliberais.

Nem só emoção, nem apenas R$ 0,20

Analisar as jornadas de junho de 2013 apenas pelo lado da indignação diante do aumento das tarifas públicas e da baixa qualidade dos serviços públicos ou dos escândalos de corrupção e de mau uso do dinheiro público é, a meu ver, olhar a questão apenas por um lado, o lado dos afetos, do humor das massas. É ignorar que entre julho de 2011 e março de 2013 a aprovação da Presidente Dilma cresceu de 48 para 63% nas pesquisas de opinião, mesmo diante de um cenário de grave crise econômica mundial que se arrastava desde outubro de 2008, ou seja, há quase cinco anos. Nesse período, em diversas democracias mundo a fora, a começar pela Grécia já em dezembro de 2008, governos sofreram forte contestação em função da perda do poder aquisitivo das populações de seus países, a adoção de medidas de ajuste dos gastos públicos, aumento das tarifas e carga tributária e redução dos serviços prestados à população. Esses cenários de contestação podem sim ter influenciado na disposição dos jovens brasileiros de, aproveitando a visibilidade conferida pela Copa das Confederações, ocupar as ruas e demonstrar sua insatisfação com suas condições de existência.

O outro lado a considerar é que os sucessivos governos das alianças lideradas pelo Partido dos Trabalhadores impulsionaram uma agenda que, embora atraísse apoio popular, se mostrava avessa à adoção de medidas mais duras de ajuste das contas públicas como passaram a exigir diversas forças empresariais de dentro e fora do país especialmente a partir do início da crise econômica mundial de 2008. Se a rápida retomada da atividade econômica em 2010 deu a impressão de que o país passaria quase incólume pela crise mundial, a queda de desempenho a partir de 2011 já anunciava dificuldades para conciliar os interesses distributivos e redistributivos dos diferentes setores da sociedade brasileira. Progressivamente setores empresariais e as lideranças sociais e políticas a eles associados se viram na necessidade de promover uma troca de comando na vida política nacional. As jornadas de junho criaram a oportunidade para que esses setores passassem a investir em diferentes frentes no desgaste e decomposição da aliança governante. A indicação clara dessa “janela de oportunidade” se dá no realinhamento da cobertura midiática após as manifestações de 17 de junho de 2013. A partir dali, não só a mídia, mas as forças de segurança em diversos estados e grupos empresariais passam a reconhecer a legitimidade e mesmo apoiar as manifestações de rua, ao mesmo tempo que buscam direcioná-las contra seus adversários e a favor de sua agenda de reformas pró-mercado.

As esperanças de promover essa mudança de agenda com uma vitória da oposição em 2014 se viram malogradas pelas urnas. A partir daí, novas levas de manifestações viriam, dessa vez buscando a judicialização da disputa sem, no entanto, abrir mão da mídia, da emoção e das ruas.

 


[1] Crônica publicada no jornal Extra, do Rio de Janeiro, em 16 de junho de 2013. <https://extra.globo.com/mulher/um-dedo-de-prosa/nao-pelos-r020-pelo-meu-direito-de-ser-feliz-8701570.html>

[2] Para uma visão geral da popularidade da Presidente Dilma a partir dos dados da pesquisa CNI/IBOPE, ver <https://arte.folha.uol.com.br/graficos/zzXby/?>

[3] Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=201020130612

[4] Para ver a participação de Jabor do Jornal Nacional de 12 de junho de 2013, acessar: <https://globoplay.globo.com/v/2631566/?s=0s>

[5] Para ver a participação de Jabor no Jornal Nacional de 17 de junho de 2013, acessar: https://globoplay.globo.com/v/2640269/

[6] Ver participação do especialista em segurança pública, o tenente coronel da PM paulista, Diógenes Lucca na edição do Jornal Nacional de 17 de junho de 2013. https://globoplay.globo.com/v/2640268/?s=0s

[7] Ver comercial veiculado pela FIAT do Brasil na televisão brasileira e na internet a partir do dia 18 de junho de 2013: https://www.youtube.com/watch?v=LKMwzMtuL90

[11] Ver gráfico já citado na nota 2.

[12] Ver https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2014/10/14/interna_politica,579480/evangelicos-aderem-a-campanha-de-aecio.shtml

[13] Aécio obteve 64,31% dos votos válidos dos paulistas contra os 35,69%  dados a Dilma, o que lhe conferiu uma vantagem de quase sete milhões de votos somente naquele estado. De fato, o mapa dos resultados do segundo turno das eleições presidenciais por unidades da federação mostra a divisão do país. Dilma foi vitoriosa em toda a região Nordeste e Aécio em todo o Sul e Centro-Oeste, havendo um padrão menos definido nas regiões Norte e Sudeste. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%A3o_presidencial_no_Brasil_em_2014#/media/Ficheiro:Mapa_do_Brasil_-_Elei%C3%A7%C3%A3o_presidencial_(2014).svg

 

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